sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Jardim do devaneio

 Nasce o devaneio 
Quando o silêncio respira fundo, 
É ali que o desejo encontra o espelho da alma 
E a tentação veste o perfume do impossível. 
 
Toda imaginação tem um ponto de febre, 
Um brilho úmido entre o real e o sonho, 
Onde o corpo quer tocar 
O que a mente teme nomear. 
 
O devaneio é um jardim 
Escondido sob as pálpebras. 
As flores são desejos antigos, 
As sombras, 
Tentações que nunca aprenderam a morrer. 
 
Há um instante 
Em que o pensamento se curva 
Ao prazer do próprio delírio. 
É aí que o devaneio nasce, 
Filho da falta e do fogo, 
Irmão do que não se pode dizer. 
 
Tudo o que desejamos demais cria um eco. 
Esse eco se transforma em sonho, 
E o sonho, quando não cabe mais na noite, 
Vira devaneio, 
Um rio subterrâneo de vontades sem nome. 
 
O devaneio não é fuga, é retorno. 
Retorno àquilo que fomos 
Antes da razão nos domar, 
À pureza do querer, 
Ao instante 
Em que o proibido ainda não tinha forma. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

O modo de ver a vida

 Ver a vida de outro modo 
É perceber que o chão também respira, 
Que o tempo não corre, 
Apenas muda de forma 
Como a água que sonha ser nuvem. 
 
Há quem veja o mundo pela janela, 
Outros o enxergam no reflexo do vidro. 
O segredo está em saber que ambos os lados 
Podem conter o infinito. 
 
Viver diferente é caminhar descalço na alma, 
Sentir as pedras que o pensamento ignora 
E descobrir que a dor, às vezes, 
É apenas o corpo tentando florescer. 
 
Os olhos que aprendem a ver o invisível 
Descobrem que nada é pequeno, 
Que até o silêncio tem cor 
E o instante, quando amado, é eterno. 
 
A vida muda 
Quando deixamos de querer entendê-la. 
Ela não é um enigma, 
É um poema inacabado, 
Que só faz sentido enquanto se escreve. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense
Imagem: Joe Bengala

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Não ore por caminho fácil

 Não suplique pela estrada lisa, 
Onde o vento não desafia. 
Peça músculos na alma, 
Para suportar o peso do sonho. 
 
Não temas os espinhos, 
Eles ensinan o passo leve. 
Que tuas pernas saibam dançar 
Mesmo sobre o chão áspero do destino. 
 
O caminho fácil adormece o espírito; 
O difícil desperta o fogo na alma. 
Que teu corpo se curve, mas não quebre, 
E tua fé seja o fôlego das montanhas. 
 
Não implores que o mundo se torne leve, 
Pede apenas joelhos que não tremam. 
Pois o que importa não é o atalho, 
Mas a coragem de seguir adiante. 
 
Quando pedires algo aos céus, 
Não seja alívio, mas vigor. 
Pois o ouro da jornada 
Se forja no atrito da dor. 
 
Não ore por suavidade, 
Ore por fibra. 
Que tuas pernas sejam troncos, 
E teus passos, raízes. 
 
Há beleza no cansaço, 
É ele quem prova que seguimos. 
Os fracos pedem caminhos suaves, 
Os fortes pedem asas firmes. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

No fim, seremos histórias

 Será que no fim 
Todos nós nos tornaremos histórias? 
Talvez seja esse o destino mais humano: 
Dissolver-se no tempo, 
Não como corpo, mas como lembrança. 
Somos capítulos que o vento folheia, 
Vozes que alguém repete 
Para não deixar morrer o que fomos. 
 
O corpo se apaga, 
Mas a memória insiste em permanecer, 
Respira em outras bocas, se abriga em outros olhos. 
Cada gesto, cada palavra dita com ternura ou fúria, 
Vira fragmento de um enredo 
Que o mundo continua escrevendo. 
 
Ser história é permanecer em outra forma, 
É existir sem presença, mas com sentido. 
Os rostos se apagam, 
Mas a emoção que deixamos nos outros não desaparece. 
Ela se torna um eco, um rumor distante, 
Uma página marcada no livro da vida. 
 
Talvez viver 
Seja apenas preparar-se para esse instante: 
Quando deixaremos de ser carne 
E passaremos a ser voz, 
Quando o tempo nos tomará nas mãos 
E nos guardará entre as páginas de alguém. 
 
E assim seguiremos, 
Como narrativas inacabadas, 
Livros que o universo relê em silêncio, 
Enquanto as nossas histórias,
Descalças e serenas, 
Continuam caminhando pela memória dos que ficaram. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O que me fez ser

 Não foi um momento só. 
Não foi uma decisão nítida, 
Nem uma virada de chave. 
Fui me tornando — devagar, por entre frestas, 
Nos cantos onde ninguém olhava. 
Fui me esculpindo em silêncio, 
Porque falar doía mais do que calar. 
 
Quando criança, 
Aprendi a escutar antes de existir. 
Era mais seguro. 
Percebi cedo que o mundo falava alto, 
Mas nem sempre dizia algo com verdade. 
Então, fui silêncio — mas não ausência. 
Fui presença contida, esperando ser notado
Sem gritar por isso. 
 
Fui os abraços que desejei e não vieram, 
As palavras doces que imaginei 
E precisei inventar para mim mesmo. 
Fui criando um alfabeto afetivo 
Só com o que sobrou. 
 
Meus afetos, aprendi a escondê-los 
Como quem esconde um caderno íntimo 
Debaixo da cama. 
Com medo que rissem. 
Com medo que roubassem. 
Com medo que amassem, 
E depois partissem. 
 
Fui me tornando alguém 
Que observa antes de entregar. 
Que oferece a alma aos poucos, 
Com mãos trêmulas, 
Como quem carrega algo frágil demais 
Para ser rejeitado. 
 
Hoje, se me perguntas quem sou, 
Talvez eu diga: 
Sou o que restou 
De todas as versões 
Que precisei abandonar para sobreviver. 
 
Mas há beleza nisso também. 
Porque nas minhas cicatrizes há mapa. 
Nos meus silêncios, memória. 
E no meu olhar, ainda vive 
Uma esperança tímida 
De ser amado sem precisar pedir. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

A dor que tem teu nome

 Só de pensar em você, 
Minha alma range os dentes. 
Há um frio que sobe pelas costas do espírito, 
Como se a lembrança de ti 
Fosse feita de ferrugem e ossos. 
 
Você é a cicatriz que escolheu não fechar, 
Um sussurro que lateja nas entranhas do pensamento. 
Teu nome, 
Quando ecoa dentro, 
Traz o gosto amargo 
De um veneno antigo 
Que aprendi a beber com ternura. 
 
Amar você, 
É amar o corte, 
É cuidar da ferida 
Como quem cultiva um altar de dor. 
 
Meu coração não pulsa: 
Ele vigia. 
Vigia tua ausência 
Como um cão preso à porta 
De um templo em ruínas. 
 
Você é o desconforto eterno 
Que acende as sombras em mim. 
E eu, tolo devoto desse mal, 
Só de pensar em você, 
Já não sei mais 
Se sou humano, 
Ou só um resto de saudade 
Que esqueceu de morrer. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Toda palavra quer nascer livre

 As palavras, quando deixadas sozinhas, 
Criam seu próprio alfabeto. 
Crescem como ervas entre as pedras da mente, 
Sussurrando segredos 
Que nem o autor se lembra de ter sonhado. 
 
Quando não as vigio, as palavras dançam. 
Tropeçam umas nas outras, 
Beijam-se no escuro da página, 
Geram sentidos que não me pertencem. 
 
As palavras fervilham 
Quando o silêncio se distrai. 
Tomam corpo, rosto, 
E caminham pela noite 
À procura de um novo dono. 
 
Não há prisão que as segure. 
Enquanto penso em moldá-las, 
Elas já estão moldando a mim. 
 
Toda palavra quer nascer livre, 
Mesmo as que escrevo em voz baixa. 
Quando viro o rosto, elas se multiplicam, 
Como pensamentos à espreita do infinito. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Quando declamo você

 Sou impuro, sim — e nisso há verdade. 
Quando te nomeio, o verbo apodrece em mim, 
Porque há febre no teu nome, 
Há doença na tua lembrança. 
Declamar você é sujar a própria boca. 
 
Minha voz te busca nas frestas da carne, 
E cada sílaba tua me contamina. 
Não há pureza possível quando te evoco, 
Somos lodo e espelho, febre e oração, 
Um mesmo corpo delirando de amor e doença. 
 
Declamar você é abrir feridas antigas. 
A poesia que te chama vem manchada, 
Não de tinta, mas de pus, 
Não de arte, mas de febre. 
Sou impuro — e ainda assim te adoro. 
 
Há beleza no que apodrece devagar. 
No som que traz germes e lembranças. 
Quando declamo você, 
Não é o poema que fala, 
É a doença tentando sobreviver em mim. 
 
Sou impuro, e talvez por isso te compreenda. 
Há sujeira em cada verso que te nomeia, 
Um tipo de santidade invertida, 
Onde o sagrado é o que sangra. 
 
 Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O tempo de partir

 Os dias passam como rios silenciosos, 
Levando na corrente o que fui, 
O que quis, o que temi. 
E quando o tempo de partir se aproxima, 
Não há tristeza, apenas o murmúrio 
De um curso que sempre soube o caminho do mar. 
 
Há um instante em que o relógio se cala, 
E o coração entende: 
Não se trata de ir embora, 
Mas de voltar para aquilo 
Que sempre chamou em silêncio. 
 
O tempo não nos toma, 
Ele nos devolve. 
Devolve ao vento o que era pó, 
À luz o que era chama, 
Ao silêncio o que era alma. 
 
Saber que os dias passam 
É compreender 
Que a eternidade mora no instante. 
E que partir não é fim, 
É apenas mudar de forma, 
Como a chama que, ao apagar-se, se faz brisa. 
 
O tempo de partir chega com passos suaves, 
Como quem não quer interromper um sonho. 
E a alma, cansada de horizontes, 
Aceita o convite do infinito. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Quis esconder-me

 Desvio os olhos, 
Mas eles sempre sabem o caminho de volta. 
O coração é cúmplice, 
Denuncia o que a boca cala. 
 
Olhar é uma confissão silenciosa. 
Por isso às vezes fecho os olhos, 
Fingindo descanso, 
Quando na verdade é fuga. 
 
Há um espelho em cada olhar. 
E o meu, ao evitar o teu, 
Só reflete a própria covardia. 
 
Quis esconder-me num piscar de olhos, 
Mas o tempo percebeu. 
Nada se esconde onde há luz, 
Nem o desejo, 
Nem o medo de ser visto. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 26 de outubro de 2025

O poeta está louco

 O poeta enlouqueceu. 
Mas sua loucura não é doença, 
É um clarão que o mundo não suporta. 
Carregado para os círculos profundos, 
Ele desce onde os anjos caídos bebem névoa e ferrugem. 
Ali, suas palavras ardem 
Como velas acesas no asfalto da modernidade. 
 
Chacinado pelos anjos caídos da modernidade, 
O poeta sangra versos sobre o concreto. 
Cada gota é uma lembrança do que era divino, 
Cada sílaba, um grito que não encontra eco 
Entre as máquinas que sonham em silêncio. 
 
Há um riso de loucura na boca do poeta, 
Não de quem perdeu a razão, 
Mas de quem a ultrapassou. 
Arrastado por asas quebradas, 
Ele toca o fundo das ideias 
Onde o humano se dissolve no ruído das cidades. 
 
O poeta está louco, dizem. 
Mas quem o julgaria são? 
Ele viu os anjos da modernidade 
Afiar suas penas em lâminas, 
E ofereceu o próprio peito como papel. 
 
No abismo elétrico das ruas, 
O poeta vaga entre ruínas de pensamento. 
Os anjos, agora programados, 
O chamam de anacronismo, de delírio. 
Mas é ele quem carrega o último fogo, 
O que ainda queima dentro da linguagem. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Cinzas de silício

 Os eletrônicos nascem febris, 
Repletos de luz, fome e novidade. 
São criaturas do instante, 
Brilham como relâmpagos 
Num céu de obsolescência. 
 
Têm corpos de metal e silêncio, 
Mas nenhuma alma que suporte a ferrugem do tempo. 
Dez anos — e já se tornam relíquias, 
Ossos digitais em gavetas esquecidas. 
O que neles pulsa é memória prestes a morrer 
Na primeira falta de energia. 
 
Os livros, não. 
Estes respiram devagar, 
Como velhos monges 
Que aprenderam o idioma da paciência. 
Carregam o pó dos séculos 
E o hálito das mãos que os folhearam. 
Suas palavras não brilham — queimam. 
Não piscam — permanecem. 
 
Enquanto o chip se apaga, 
A página acende. 
Enquanto o circuito se parte, 
A frase se multiplica em bocas, vozes, ecos. 
 
O futuro é curto para os eletrônicos, 
Mas o passado é vasto para os livros. 
E quando tudo o que resta for poeira e silêncio, 
Será ainda uma palavra, 
Escrita à sombra de uma vela, 
Quem contará a história 
De tudo o que quis ser eterno 
E durou apenas dez anos. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 25 de outubro de 2025

Quando sonha comigo

 Aposto que sente saudades quando sonha comigo. 
Não dessas que se dizem em voz alta, 
Mas daquelas que o corpo reconhece 
Antes que a mente desperte. 
 
Nos seus sonhos, eu volto, 
Sem culpa, sem distância, 
Com o mesmo olhar que o tempo não conseguiu roubar. 
Você tenta fingir que esqueceu, 
Mas o esquecimento não sabe mentir por tanto tempo. 
 
Lá, entre a penumbra e o silêncio, 
Me chama sem palavras, 
Como se meu nome 
Ainda tivesse morada na sua respiração. 
E eu venho — não porque quero, 
Mas porque há desejos que nunca aprendem a morrer. 
 
O sonho é o lugar onde o orgulho dorme, 
E a verdade, por um instante, acorda. 
É ali que sua pele volta a me procurar, 
Como se o toque fosse uma oração antiga. 
 
Mas o amanhecer sempre chega. 
E com ele, a sua pressa em fingir que não sente, 
Que não lembra, 
Que não sonhou. 
 
Mesmo assim, aposto. 
Aposto no instante em que seus olhos se fecham, 
No suspiro antes do esquecimento. 
Porque sei: 
No reino dos sonhos, 
Sou eu quem a visita, 
E é você quem nunca parte. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Cada dia sem teu olhar

 A solidão é um quarto que fala baixo, 
Sussurra teu nome nas paredes frias. 
Se não voltares, 
Ela me devora, 
Devagar, 
Como o tempo consome um retrato esquecido. 
 
O silêncio tem tua voz invertida. 
Toda noite eu a escuto, 
Mesmo quando o mundo dorme. 
Se não fores minha volta, 
Serei apenas eco. 
 
A solidão não mata de uma vez, 
Ela me apaga aos poucos, 
Como vela em vento contido. 
Cada dia sem teu olhar 
É mais um passo em direção ao nada. 
 
Há amores que curam, 
Mas o teu partiu levando a cura. 
O que ficou em mim 
É o espelho rachado da tua ausência. 
E o reflexo… 
Aos poucos, deixa de ser eu. 
 
A solidão vai acabar comigo, 
Não por ser dor, 
Mas por ser constância. 
O amor era o intervalo, 
A pausa entre os vazios. 
Sem ti, o vazio é tudo. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

O silêncio do pensador

 Há quem viva leve, 
Com o coração feito pedra lisa de rio, 
Que o tempo leva e o sol aquece. 
Mas há os que pensam demais, 
E neles o mundo pesa mais do que devia. 
 
Carregam o que foi, 
O que poderia ter sido, 
E até o que nunca será. 
A cada ideia, uma pedra. 
A cada lembrança, um eco que não cessa. 
 
O pensamento é um poço sem corda: 
Olhar demais é ver o reflexo afogar-se 
No espelho das próprias perguntas. 
E há tantas perguntas, 
Tantas que o ar se torna denso, 
E o simples ato de respirar 
Parece um exercício de sobrevivência. 
 
A lucidez arde como chama: 
Ilumina o caminho, mas consome o andarilho. 
O que vê demais esquece o que sente, 
E o que sente demais não consegue esquecer. 
 
Há um instante, porém, 
Em que o peso e o pensar se equilibram: 
Quando a mente se cala, 
E o vento, esse velho filósofo, 
Ensina o corpo a existir sem explicação. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

O tempo que perdi

 Perdi tempo, sim. 
Na curva suave do teu nome, 
No silêncio em que esperei resposta 
De um eco que nunca voltou. 
 
Te amar foi esquecer o relógio, 
Viver nas horas suspensas, 
Onde o futuro se desfaz 
E o passado ainda sangra. 
 
Colhi teus gestos como quem colhe névoas, 
Achando que nelas havia abrigo. 
Mas o que havia era o vento, 
E eu, sempre voltando para o mesmo vazio. 
 
O tempo que perdi por te amar 
Ainda me visita em tardes lentas, 
Quando o sol parece cansado 
E o coração, um velho viajante, 
Reconta caminhos que não levaram a lugar algum. 
 
Não me arrependo. 
Há perdas que são sementes, 
E há amores que, mesmo mortos, 
Ainda florescem em silêncio 
Dentro de nós. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Quero invadir teu coração

 Quero invadir teu coração sem aviso, 
Derrubar as portas que o orgulho fechou, 
Ser furacão onde foste fortaleza, 
Ser tua rendição onde antes havia guerra. 
 
Desejo te possuir onde ninguém toca: 
Na dobra da tua alma, 
No lugar exato 
Em que teus pensamentos se escondem 
Quando finges que não sentes. 
Quero ser o eco do que te consome. 
 
Não quero ser lembrança, 
Quero ser obsessão. 
Quero habitar tua mente como um vício, 
Te assombrar de desejo 
Até que teu corpo clame pelo meu nome 
Em silêncio ou em grito. 
 
Te invadir não como quem pede licença, 
Mas como quem toma 
O que é seu por direito de sentir. 
Ser teu delírio, tua febre, tua confusão. 
Fazer morada no centro do que te enlouquece. 
 
Quero ser o pensamento que não te deixa dormir, 
A presença que arde mesmo na ausência. 
Ser teu labirinto e tua saída. 
Te possuir por dentro, 
Não só com mãos, 
Mas com palavras que arrombam. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Os anos se foram

 Os anos se foram sem pedir licença, 
Como visitas que nunca chegaram a entrar, 
Mas deixaram pegadas no tapete da memória. 
A juventude escorreu pelos meus dedos 
Como areia molhada, 
Quanto mais apertei, 
Mais rápido sumiu. 
 
Tantos dias vivi esperando o amanhã, 
Que não vi o ontem se apagar 
Com as luzes da tarde. 
A vida me atravessou em silêncio, 
E só agora, do alto do cansaço, 
Entendo que envelheci 
Sem ter aprendido a viver devagar. 
 
Fui riscando os dias no calendário, 
Pensando em tudo que ainda viria, 
E sem perceber, 
Rabisquei uma vida inteira. 
Olhei no espelho e vi 
Um estranho com olhos cansados. 
Ele me sorriu com tristeza, 
Era eu, depois dos sonhos. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Teu perfume que ficou

 Teu perfume ficou, 
Como sombra do toque que partiu, 
Silêncio que o tecido aprendeu a guardar. 
 
Entre o ombro e o peito, 
Há um sopro teu, 
Um resto de presença 
Que o vento não levou. 
 
Cada dobra da roupa 
É uma lembrança embriagada, 
Uma estação que não termina, 
Um sonho que insiste em exalar. 
 
Não sei se és lembrança ou feitiço, 
Se é o amor que evapora 
Ou a ausência que se adorna de ti. 
 
Mas quando a noite me veste de saudade, 
É teu cheiro que desperta, 
Flor oculta, chama suave, 
Memória viva do que fui contigo. 
 
E então entendo: 
Há perfumes que não se lavam, 
Porque não moram no pano, 
Mas na alma que os respira. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Poesia em tempos de ruídos

Que as palavras deixem de ser lanças 
E voltem a ser pontes. 
Que cada voz, ao erguer-se, 
Traga consigo um verso, 
Não uma guerra. 
 
Entre o grito e o silêncio, 
Escolhamos a canção. 
Entre a bandeira e o poema, 
Escolhamos o vento 
Que sopra sobre todas as cores. 
 
Há quem queira mudar o mundo 
A golpes de opinião. 
Nós o mudaremos 
A golpes de beleza, 
Um poema por vez. 
 
Enquanto discutem fronteiras, 
As flores continuam nascendo 
Em qualquer lado do muro. 
A terra não tem partido, 
Só primavera. 
 
Menos discursos inflamados, 
Mais corações incendiados 
Por algo que não destrói. 
Menos razão em armas, 
Mais emoção desarmada. 
 
A política divide, 
A poesia comove. 
Entre os dois extremos 
Há o espaço sagrado 
Onde o humano se reencontra. 
 
E quando a fúria for o idioma comum, 
Falemos baixo, 
Em versos, 
Para que o mundo volte a ouvir 
O som da alma respirando. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Aquilo que o tempo não desgasta

Que a minha criatividade seja fecunda, 
Como terra escura onde ideias germinam. 
Que o meu gosto saiba escolher o raro, 
Aquilo que o tempo não desgasta. 
E que a minha opinião, quando dita, 
Tenha o peso suave das águas profundas, 
Movendo o mundo sem precisar gritar. 
 
Que em mim floresça o dom da criação, 
Onde cada palavra seja semente. 
Que o meu gosto seja farol, 
Guiando o olhar entre o efêmero e o eterno. 
E que a minha opinião venha do âmago da alma, 
Profunda como a voz do silêncio. 
 
Quero que minha criatividade gere mundos, 
Meu gosto encontre o essencial, 
E minha opinião toque o fundo das coisas, 
Não para convencer, 
Mas para revelar. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Respirando o ar do fim

 Às vezes, é o mundo que morre, não os mortos. 
Os mortos apenas dormem em silêncio, 
Guardam o fôlego das estrelas 
E o perfume das flores que não murcham. 
Mas o mundo… 
Ah, o mundo sangra em cada esquina esquecida, 
Em cada olhar que desaprendeu a ver o céu. 
 
Às vezes, é o mundo que apodrece de dentro, 
Com suas máquinas que devoram o vento, 
Seus risos ocos, suas promessas sem alma. 
Os mortos, em sua calma, parecem mais vivos, 
Porque ainda recordam o que é ser inteiro. 
 
Talvez a morte verdadeira 
Seja continuar aqui, respirando o ar do fim, 
Caminhando entre ruínas 
Que ainda fingem ser cidades. 
Porque às vezes, só às vezes, 
Os mortos somos nós, 
E o mundo é apenas o túmulo 
Que insiste em se mover. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

As ruas falam em silêncio

As ruas falam em silêncio, 
Não com vozes, mas com fome. 
O prato vazio grita mais alto 
Que qualquer discurso em praça pública. 
 
Há quem colecione privilégios 
Como moedas raras, 
E há quem conte centavos 
Para comprar o pão de amanhã. 
 
O brilho das vitrines cintila 
Enquanto pés descalços tropeçam nas calçadas; 
A desigualdade é um espetáculo cruel 
Que se repete todos os dias, 
Sem que a maioria ouse aplaudir. 
 
Na cidade partida, 
Uns constroem muros altos para não ver, 
Outros cavam buracos fundos para sobreviver. 
E no meio disso, 
O cotidiano transforma injustiça em rotina, 
A dor em estatística, 
O abandono em normalidade. 
 
Mas cada olhar que se recusa a aceitar, 
Cada mão que se estende, 
Cada voz que se levanta contra o silêncio, 
É um lembrete: 
A vida não pode ser apenas sobrevivência, 
A justiça não pode ser apenas palavra. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Os dias que vieram depois

 Os primeiros dias foram estranhos. 
Uma mistura de vazio e liberdade. 
Como aprender a andar de novo 
Depois de anos com os pés presos. 
 
Ainda havia momentos 
Em que o pensamento escorregava. 
Seu nome aparecia nas esquinas da minha mente, 
Em músicas, em cheiros, 
Em pedaços de frases que eu lia por acaso. 
 
Mas eu já não me deixava afundar. 
Respirava fundo, 
Engolia o nó na garganta, 
E seguia. 
 
Comecei a retomar pequenos rituais: 
Organizar os livros que deixei empilhados por semanas, 
Voltar a caminhar sem direção, 
Ouvir músicas que falavam de qualquer coisa… 
Menos de você. 
 
Aos poucos, fui ocupando os espaços que você deixou. 
Troquei os lençóis, 
Mudei os móveis de lugar, 
Apaguei conversas, 
Limpei fotos antigas. 
 
Redescobri o gosto de estar sozinho 
Sem me sentir solitário. 
 
Comecei a rir de novo, 
Às vezes por coisas bobas, 
Às vezes só pela sensação 
De ser dono do meu próprio corpo, 
Da minha própria história. 
 
Sim… ainda dói de vez em quando. 
Tem noites em que a saudade bate 
Como uma visita indesejada. 
Mas agora… 
Ela não fica. 
Ela vem, eu reconheço, 
E a deixo ir. 
 
Cada dia é um pouco mais leve. 
Cada manhã é menos sobre você 
E mais sobre mim. 
 
E se alguém me perguntar 
O que restou depois de tudo, 
Eu direi: 
Restou a minha pele, 
Meus passos, 
Meus sonhos reconstruídos. 
E a certeza de que o amor… 
Quando for de verdade… 
Nunca mais vai me fazer sangrar assim. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense