quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Transformações no mundo

 O mundo não errou — apenas se moveu. 
As ruas antigas, que um dia guardaram passos lentos, 
Agora tremem sob a pressa de relógios que ninguém controla. 
Não culpamos o passado por ter sido brando: 
Ele apenas dormia enquanto o futuro afiava suas lâminas. 
 
As transformações não pediram licença. 
Chegaram como vento que troca de direção no meio da noite, 
Fazendo as janelas rangerem, 
Fazendo o coração sentir 
Que algo não pertence mais ao lugar onde sempre esteve. 
 
Ainda assim, o antigo permanece, silencioso, 
Como um velho guardião que observa sem julgar, 
Sabendo que cada época acende suas próprias sombras. 
O contemporâneo apenas revela outras formas de escuridão, 
Outras máquinas, outros medos, 
Outros abismos que aprendemos a chamar de progresso. 
 
E nós seguimos — não como testemunhas culpadas, 
Mas como viajantes 
Que atravessam pontes que não construíram, 
Levando dentro do peito a memória do que fomos 
E a dúvida tremulante do que ainda podemos ser. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Amar não precisa doer

Te amei sem saber me guardar, 
Sem freio, sem rede, sem chão. 
Te dei o que havia para dar, 
Sem nunca escutar o "não". 
 
Te amei no escuro, inocente, 
Com sede de sol e calor. 
Te amei como ama quem sente, 
Sem peso, sem filtro, com dor. 
 
Não via limites, fronteiras, 
Confundi carinho e prisão. 
Achei que cair nas barreiras 
Era parte da devoção. 
 
Te amei sem saber que o limite 
Protege, resguarda o coração. 
Fui rio, fui mar, fui convite, 
Mas nunca fugi da razão. 
 
Agora, que sei me dizer, 
Me vejo e me entendo melhor. 
Amar não precisa doer, 
Nem nasce de um “sim” sem valor. 
 
Te amei, e não me arrependo, 
Mas hoje, com alma e razão, 
Prefiro um amor que, aprendendo, 
Também saiba ser um "não". 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Prisioneiros socioculturais

 Somos moldes de barro seco, 
Que nunca tocaram a água do próprio desejo. 
Vestimos máscaras herdadas, 
Chamamos de “eu” o que é apenas espelho. 
 
Na cela invisível da rotina, 
O grito não ecoa — vira bocejo. 
Chamam de “vida adulta” 
O enterro lento do que era selvagem. 
 
A liberdade sorri do outro lado da vitrine, 
Enquanto nos vendem padrões em liquidação. 
E o medo do estranho 
Vira corrente de ouro. 
 
Crescemos em jardins murados, 
Ensinaram-nos a chamar os muros de proteção. 
Mas quem nunca viu o mar 
Não sabe o que é o infinito. 
 
É preciso desaprender as certezas, 
Para descobrir as janelas na parede. 
A alma não nasceu para caber, 
Nas gavetas da tradição. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

A casa do pensamento

Há uma casa invisível dentro de cada mente. 
Suas paredes são feitas de horas, 
E o teto, de silêncio. 
Ali, a disciplina é quem varre o chão das distrações, 
Mantendo o espaço limpo 
Para que as ideias possam respirar. 
 
O pensamento chega como quem bate à porta, 
Às vezes tímido, às vezes urgente. 
Mas só entra quando o espírito está em ordem, 
Quando a casa interior 
Foi varrida do ruído e do cansaço. 
 
Trabalhar o intelecto é um ofício paciente, 
Feito de gestos repetidos, 
Como quem aprende a escutar o som da própria escrita. 
A mente se torna espelho, 
E o espelho, janela. 
O mundo então se reflete, 
Não como é, 
Mas como pode ser pensado. 
 
A disciplina é o arquiteto invisível dessa morada. 
Ela ergue colunas de constância, 
Abre janelas de lucidez, 
E ensina que pensar 
É uma forma de fé, 
Fé na luz que vem 
De dentro para fora. 
 
Pois aquele que habita sua mente 
Com serenidade e rigor 
Descobre, um dia, 
Que o pensamento não é prisão nem dever, 
Mas um lugar onde o infinito 
Se senta à mesa 
E conversa. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 16 de novembro de 2025

Canto o meu próprio ser

 Eu canto o meu próprio ser 
Como quem afia uma lâmina na própria sombra. 
Cada verso nasce de uma pequena ferida, 
E ainda assim é música, 
A música daquilo que resiste. 
 
Canto porque sou feito de retornos, 
De ecos que ninguém ouviu, 
De tempestades que aprendi a domesticar 
Com as mãos nuas. 
 
E a vida plena de paixão 
Não é um jardim, mas um incêndio lento: 
Uma chama que não pergunta se dói, 
Que apenas cresce, consome, transforma. 
 
Há uma loucura doce 
Em existir com o peito aberto, 
Em permitir que o mundo me atravesse 
Como flecha, como sopro, como rito. 
 
Eu canto o meu próprio ser 
Para lembrar que ainda estou aqui, 
Mesmo quando me perco de mim. 
Canto porque as cicatrizes também têm voz 
E, às vezes, cantam mais alto que a pele. 
 
E se a vida é paixão, 
Que seja excessiva, faminta, inevitável. 
Que eu me reconheça no vermelho das minhas recusas, 
No brilho dos meus abismos, 
No tremor que anuncia que algo em mim renasce. 
 
Eu canto, 
Porque é a única forma de continuar vivo 
Dentro do que me devora. 
 
E, no fim, 
Sou eu que devoro a escuridão 
Para transformá-la em uma canção. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 15 de novembro de 2025

Mesmo que as crenças morram

 Há quem diga que a perdição é o fim. 
Mas às vezes ela é só o início de um silêncio 
Tão profundo 
Que nele podemos finalmente ouvir 
A nossa própria respiração: 
Um testemunho frágil 
De que ainda estamos aqui. 
 
E encontrar fé na extinção das crenças 
É como recolher brasas de um incêndio extinto. 
Não é a chama que retorna, 
Mas o calor que sobrou, 
Aquele calor teimoso, quase invisível, 
Que nos lembra que algo já ardeu em nós 
E pode arder de novo. 
 
Porque a fé, quando resta sozinha, 
Sem nome, sem rito, sem moradia, 
Vira apenas um impulso de continuar: 
Um movimento mínimo 
Que o mundo não percebe, 
Mas que mantém o peito aberto 
Ao que ainda pode nascer 
Do meio do nada. 
 
Existir assim — achar-se na perda, 
É como ser um farol esquecido numa costa morta, 
Que ainda insiste em girar sua luz 
Mesmo quando não há mais navios, 
Nem mar, 
Nem olhos atentos ao brilho. 
 
Talvez existir seja isso: 
Ser achado justamente onde nos perdemos, 
Carregar uma centelha 
Quando todo o resto virou cinza, 
E caminhar sabendo que, 
Mesmo que as crenças morram, 
O desejo de sentido não morre nunca. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Sala sem portas

 Às vezes acho que estou preso 
Dentro de um espelho rachado. 
Cada pedaço tenta refletir um pedaço de mim, 
Mas nenhum diz a verdade inteira. 
 
Há dias em que sinto 
Que um nome quase nasce na minha garganta, 
Um nome para essa inquietação que me cerca, 
Mas ele morre antes do som. 
 
É como viver dentro de uma sala sem portas, 
Onde o ar não sufoca, mas também não liberta. 
Onde cada sensação é um fio solto, 
E quando tento pegar, 
Ele escapa entre os dedos. 
 
Eu me movo, mas não avanço. 
Eu penso, mas não defino. 
Eu sinto, mas não sei dizer o quê. 
 
Talvez eu seja uma frase que ainda não sabe 
Qual verbo pertence a ela. 
Ou talvez eu seja apenas o silêncio 
Entre duas palavras 
Importantes demais para serem ditas. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Cinquenta e dois anos de caminhos

Cinquenta e dois sóis já nasceram em mim, 
Cada um acendendo memórias no corpo, 
E deixando em minhas mãos 
O mapa daquilo que fui. 
Sou grato pelas sombras, 
Pois nelas aprendi a ver a luz. 
 
A vida me ensinou que o tempo não leva, 
Ele transforma. 
Tudo o que amei ainda vive em mim, 
De outro modo, de outra cor, 
Como o ouro discreto das folhas no outono. 
E sigo, esperançoso, 
Para o tempo que me aguarda com flores novas. 
 
Há uma doçura em chegar até aqui: 
Ver que o ontem foi escola, 
O hoje é milagre, 
E o amanhã — promessa aberta no horizonte. 
Sou grato ao que ficou, 
E confio no que virá. 
 
Cinquenta e dois anos de caminhos, 
De silêncios e vozes, 
De perdas que me tornaram mais inteiro. 
Hoje agradeço ao que fui, 
E saúdo o que ainda posso ser. 
 
Não conto mais o tempo em dias, 
Mas em amanheceres de coragem. 
A vida não é o que passou, 
É o que ainda pulsa, 
E eu sigo, com gratidão e esperança, 
Escrevendo o resto da minha eternidade. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Crônicas de meio século

Carrego meio século nas mãos, 
Não como peso, mas como mapa. 
Cada linha da palma guarda um rio, 
Um erro, um rosto, um silêncio. 
 
O tempo, esse escultor invisível, 
Me lapidou em noites de espera 
E manhãs que nasceram sem promessa. 
Aprendi que existir é resistir 
À própria dissolução. 
 
Há memórias que brilham como lâminas, 
Outras que repousam, gastas, 
No fundo das gavetas do ser. 
Mas todas me compõem, 
Como constelações de um céu particular 
Onde o passado ainda respira. 
 
Já não busco o sentido, 
Ele se esconde nas frestas do cotidiano, 
No café que esfria, 
No gesto breve de quem parte. 
 
Metade da vida talvez seja apenas isso: 
Um aprendizado lento 
Sobre como perder sem desaparecer, 
Como amar sem possuir, 
Como permanecer quando tudo muda. 
 
E se houver outra metade à frente, 
Que venha com menos pressa, 
Mais sombra, mais pausa, 
Para que eu possa, enfim, 
Ouvir o murmúrio do que fui 
Sem medo de deixar de ser. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Entre dois séculos

Teu olhar foi a pausa entre dois séculos, 
E nesse intervalo suspenso, 
Onde o ar se tornou memória, 
O universo esqueceu o próprio nome. 
 
O som das máquinas cessou, 
As cidades ficaram de joelhos diante do instante, 
E as estrelas, como se voltassem à infância, 
Piscaram com o espanto 
De quem vê o primeiro nascer do sol. 
 
Ali, onde o tempo hesitou, 
Me vi dissolver naquilo que não tem medida. 
Não havia mais passado nem promessa, 
Só um fio de eternidade 
Se desenrolando dentro da tua íris. 
 
Teu olhar, esse abismo de calma, 
Me revelou que o infinito é uma invenção breve, 
Um segredo guardado 
Na respiração entre dois pensamentos, 
Na fronteira 
Onde o real se despede do nome que carrega. 
 
Fiquei ali, imóvel, 
Ouvindo o silêncio 
Que cresce quando o sentido desaparece. 
Percebi que o corpo não cabe em si, 
Que a alma é uma vertigem que busca espelho, 
E que talvez amar seja apenas reconhecer-se 
No reflexo de um tempo que não volta. 
 
Teu olhar me deu essa revelação: 
Que o ser é instante, 
Que o instante é tudo, 
E que, por um breve milagre, 
Ser finito pode conter o infinito. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Os bons sentimentos estão em extinção (Mas ninguém ligou)

Todo mundo quer ser ouvido, 
Mas ninguém suporta silêncio que não seja o próprio. 
Todo mundo quer colo, 
Mas não sabe onde pôr os braços 
Quando o outro chora. 
 
É quase engraçado, não fosse tão triste. 
Nascemos carentes, 
Crescemos orgulhosos, 
Morremos sozinhos, 
Mas com a pose intacta. 
 
Ser gentil virou excentricidade. 
Perguntar "tudo bem?" com real interesse 
É tratado como invasão de privacidade. 
 
Pessoas tropeçam, 
Mas em vez de mãos, 
Recebem diagnósticos rápidos e conselhos prontos 
De quem nunca sentiu sede 
Mas adora ensinar a beber do próprio veneno. 
 
O mundo anda cheio de frases bonitas 
E gente vazia. 
Sorrisos de rede social 
E afetos por atacado. 
É como se estivéssemos todos 
Numa grande convenção de sobrevivência emocional, 
Onde o lema é: 
"Antes ferir do que ser ferido." 
 
E de ferida em ferida, 
Vai-se perdendo o tato. 
A carne vira couraça, 
O coração, protocolo. 
 
Ninguém é bom com ninguém. 
Não por maldade explícita, 
Mas por falta de tempo, 
De prática, 
Ou simplesmente por cansaço. 
 
Talvez sejamos só isso: 
Criaturas que um dia sonharam em ser luz, 
Mas aprenderam cedo 
Que sombra é mais segura. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 9 de novembro de 2025

O vírus é a palavra

 O vírus é a cura. 
Ele entra pelas fendas do silêncio, 
E desperta o que dorme nas margens da carne. 
Ele elimina os obstáculos da mente 
Os enigmas obscuros da existência. 
 
O vazio é o parasita, 
Cresce onde não há verbo, 
Onde o pensamento permanece mudo. 
Aloja-se no âmago do sentimento 
Como se possuísse o saber escondido. 
 
Os corpos ocos estão infectos, 
Mas é a infecção que os devolve ao sentido: 
Cada palavra é uma febre, 
Cada frase, 
Uma ferida que cicatriza por dentro. 
 
O vírus é a palavra. 
Espalha-se pela escrita, 
Transmite-se pelo olhar de quem lê. 
Expande a mente além da superfície 
Dando novo sentido a existência. 
 
O vazio é eliminado 
Se as palavras são escritas, 
Porque escrever é contaminar o nada, 
E dar ao silêncio um corpo doente, 
Capaz de dizer-se vivo. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 8 de novembro de 2025

Talvez Deus esteja dormindo

 Tudo é cinza e descascado por aí. 
O tempo mastiga as fachadas, as almas, os nomes. 
Os relógios já não marcam horas, 
Apenas feridas que se repetem. 
 
Tento falar com Deus, 
Mas o horário de visitas já passou. 
As portas do céu rangem 
Como portões enferrujados de hospício, 
E o silêncio é o único padre de plantão. 
 
As correntes nos meus pés pesam mais 
Do que um milhão de mundos esquecidos. 
Cada elo guarda o eco de uma prece que não chegou, 
De um sonho que apodreceu no ar. 
 
Caminho — se é que isso é caminhar, 
Entre os escombros da fé e da carne, 
Onde até a luz 
Parece cansada de fingir que ainda é luz. 
 
Conto as horas e ignoro os minutos, 
Como quem mede o infinito em parcelas de tédio. 
Porque o que dói não é o tempo que passa, 
Mas o tempo que fica preso dentro da gente. 
 
Talvez Deus esteja dormindo. 
Ou talvez sejamos nós 
Que nunca mais acordamos. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Resquício do sonhador

Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim. 
E eu acordei dentro dele. 
As horas se arrastavam como sombras indecisas, 
E o ar parecia feito de lembranças que não me pertenciam. 
Havia vozes chamando por um nome que não era o meu, 
Mas que eu reconhecia como se viesse de um outro tempo, 
De um outro eu, esquecido entre duas realidades. 
 
Talvez eu seja apenas o resquício do sonhador, 
O reflexo de uma consciência cansada 
Que tentou acordar e falhou. 
Porque o sonho continuou… 
E eu segui nele, vestindo a carne de quem dorme. 
 
Senti o toque frio de algo que não existe, 
Vi rostos desfeitos pela própria dúvida, 
E compreendi: o pesadelo não pertence a ninguém, 
Ele apenas escolhe moradas temporárias. 
 
Ontem, ele habitou em mim. 
Hoje, talvez em você. 
E amanhã… quem sabe o mundo inteiro 
Não passe a sonhar o mesmo sonho escuro? 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Há algo no teu sorriso

Há algo no teu sorriso 
Que não sei nomear, 
Talvez um eco de casa, 
Ou o presságio de um abismo. 
 
Quando ele surge, 
Meu peito, que tanto se defende, 
Se abre em silêncio, 
Como se enfim entendesse 
Que perder o controle 
Também é uma forma de paz. 
 
Teu sorriso não grita, 
Não exige, 
Apenas acontece, 
E nesse instante 
O mundo inteiro parece respirar comigo. 
 
Mas há perigo no encanto: 
Ele acalma, sim, 
Mas também me desarma, 
Me despe das razões, 
Me deixa à mercê de um sentir 
Que não sei conter. 
 
Talvez seja isso o amor, 
Um sorriso que consola, 
Enquanto, sem pedir licença, 
Me desfaz. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

A Geometria do Pensar

A mente, quando desperta, busca forma. 
Não suporta o informe, 
Mas também não se contenta com o molde. 
Disciplina é o intervalo 
Entre o impulso e o sentido, 
Um espaço de contenção 
Onde o caos se faz linguagem. 
 
Pensar é erguer arquitetura sobre o abismo. 
Cada ideia, 
Uma pedra suspensa pelo fio do rigor. 
A paciência é a argamassa invisível 
Que impede o colapso do pensamento. 
 
A disciplina intelectual não aprisiona, 
Ela tensiona, sustém, 
Traça fronteiras 
Que o espírito precisa para não se perder 
Na vastidão do possível. 
 
Sem método, o intelecto se dispersa 
Como luz em névoa. 
Com excesso de método, torna-se pedra imóvel. 
A sabedoria 
Está no ponto de combustão entre ambos: 
Onde o fogo encontra a geometria. 
 
Domar o caos é o primeiro gesto do criador. 
Não para destruí-lo, 
Mas para ouvir o ritmo secreto de sua desordem, 
Pois só o pensamento disciplinado 
Pode tocar o indizível 
Sem se dissolver nele. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Desconforto do amor

 Só de pensar em você, 
Meu corpo se aquieta 
Mas a alma se remexe, 
Como quem dorme num leito de espinhos 
E sonha com flores. 
 
Você mora onde meu pensamento tropeça, 
Num canto da memória que nunca cicatriza. 
É presença que falta, 
Falta que pesa, 
Peso que flutua 
Nas veias do meu silêncio. 
 
O amor, quando chega sem pedir licença, 
É como uma febre serena: 
Não derruba, 
Mas desorienta. 
É um vazio tão cheio de você 
Que não sei mais o que é paz 
Sem essa inquietude. 
 
Você, 
Meu leve tormento, 
Meu doce incômodo, 
Minha âncora no ar, 
Só de pensar em você, 
Tudo em mim perde o lugar. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Quem ainda se indigna

Ainda que imposta, 
Há que rejeitar-se, sempre, 
A normalização do absurdo. 
 
Porque o hábito é um veneno doce, 
E o silêncio, uma forma de consentir. 
Chamam de ordem o que é submissão, 
De paz o que é medo, 
De progresso o que é ruína disfarçada. 
 
Mas há um grito que não se dobra, 
Um lampejo que resiste na sombra. 
É nele que o humano se afirma, 
Não no aceitar, mas no negar o inaceitável, 
Não no conformar-se, mas no desobedecer 
À mentira repetida até parecer verdade. 
 
O absurdo quer ser rotina, 
Quer sentar-se à mesa 
E brindar à indiferença. 
Mas quem ainda sente, 
Quem ainda sonha, 
Quem ainda se indigna, 
É a rachadura por onde entra a luz. 
 
E por essa fresta, 
A liberdade respira. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 2 de novembro de 2025

Meu verbo é livre

 Não serei mais uma costa curvada 
Sob o sol dos mandamentos e relógios. 
Meu corpo não pertence ao toque dos sinos 
Nem às vozes que pedem licença para existir. 
O que nasce em mim agora 
É um nome sem dono, 
Um silêncio que não precisa dizer “senhor”. 
 
Hoje ergo o dorso, 
Não por orgulho, 
Mas por fim. 
Não carrego mais o peso dos horários, 
Nem a reverência que dobra a língua. 
O sol pode arder, 
Mas não me comanda. 
E de minha boca 
Não sairá mais o eco do “senhor”. 
 
Já fui a sombra curvada dos dias, 
Moldada pelo medo do atraso, 
Pelo gesto automático da obediência. 
Agora me ergo, 
Tronco de luz que não se curva, 
Palavra que não se cala. 
Meu tempo começa onde acaba o “senhor”. 
 
Não sou mais coluna dobrada, 
Nem voz domesticada. 
Meu verbo é livre, 
E o sol, testemunha. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 1 de novembro de 2025

A próxima esquina

 A próxima esquina 
Talvez traga o riso que perdi, 
Ou o silêncio que aprendi a amar. 
Talvez um rosto novo, 
Ou o eco do que não vivi. 
Talvez uma nova forma de ver o mundo 
Ou de desistir dele de uma vez. 
 
A vida dobra esquinas como quem muda de página. 
Cada curva — um talvez, 
Um corpo, uma esperança, 
Ou uma tragédia disfarçada de começo. 
E nunca sabemos ao certo 
O que iremos encontrar do outro lado. 
 
A próxima garota pode ser um porto, 
Ou uma tempestade. 
A próxima esperança, um sopro; 
A próxima tragédia, um espelho. 
Terá ela os olhos castanhos 
E o coração aberto ao amor? 
 
Há sempre algo à espreita depois da esquina: 
Um olhar que acende, 
Um beijo que apaga, 
Um destino que ri da nossa pressa. 
Há sempre um mistério que nos assusta 
E uma esperança que nos acalenta. 
 
Quem caminha sem medo das esquinas 
Entende que viver 
É escolher entre seguir em frente 
Ou naufragar no talvez. 
Entende que esse mistério é necessário 
Para que a vida não seja vazia. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Jardim do devaneio

 Nasce o devaneio 
Quando o silêncio respira fundo, 
É ali que o desejo encontra o espelho da alma 
E a tentação veste o perfume do impossível. 
 
Toda imaginação tem um ponto de febre, 
Um brilho úmido entre o real e o sonho, 
Onde o corpo quer tocar 
O que a mente teme nomear. 
 
O devaneio é um jardim 
Escondido sob as pálpebras. 
As flores são desejos antigos, 
As sombras, 
Tentações que nunca aprenderam a morrer. 
 
Há um instante 
Em que o pensamento se curva 
Ao prazer do próprio delírio. 
É aí que o devaneio nasce, 
Filho da falta e do fogo, 
Irmão do que não se pode dizer. 
 
Tudo o que desejamos demais cria um eco. 
Esse eco se transforma em sonho, 
E o sonho, quando não cabe mais na noite, 
Vira devaneio, 
Um rio subterrâneo de vontades sem nome. 
 
O devaneio não é fuga, é retorno. 
Retorno àquilo que fomos 
Antes da razão nos domar, 
À pureza do querer, 
Ao instante 
Em que o proibido ainda não tinha forma. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

O modo de ver a vida

 Ver a vida de outro modo 
É perceber que o chão também respira, 
Que o tempo não corre, 
Apenas muda de forma 
Como a água que sonha ser nuvem. 
 
Há quem veja o mundo pela janela, 
Outros o enxergam no reflexo do vidro. 
O segredo está em saber que ambos os lados 
Podem conter o infinito. 
 
Viver diferente é caminhar descalço na alma, 
Sentir as pedras que o pensamento ignora 
E descobrir que a dor, às vezes, 
É apenas o corpo tentando florescer. 
 
Os olhos que aprendem a ver o invisível 
Descobrem que nada é pequeno, 
Que até o silêncio tem cor 
E o instante, quando amado, é eterno. 
 
A vida muda 
Quando deixamos de querer entendê-la. 
Ela não é um enigma, 
É um poema inacabado, 
Que só faz sentido enquanto se escreve. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense
Imagem: Joe Bengala

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Não ore por caminho fácil

 Não suplique pela estrada lisa, 
Onde o vento não desafia. 
Peça músculos na alma, 
Para suportar o peso do sonho. 
 
Não temas os espinhos, 
Eles ensinan o passo leve. 
Que tuas pernas saibam dançar 
Mesmo sobre o chão áspero do destino. 
 
O caminho fácil adormece o espírito; 
O difícil desperta o fogo na alma. 
Que teu corpo se curve, mas não quebre, 
E tua fé seja o fôlego das montanhas. 
 
Não implores que o mundo se torne leve, 
Pede apenas joelhos que não tremam. 
Pois o que importa não é o atalho, 
Mas a coragem de seguir adiante. 
 
Quando pedires algo aos céus, 
Não seja alívio, mas vigor. 
Pois o ouro da jornada 
Se forja no atrito da dor. 
 
Não ore por suavidade, 
Ore por fibra. 
Que tuas pernas sejam troncos, 
E teus passos, raízes. 
 
Há beleza no cansaço, 
É ele quem prova que seguimos. 
Os fracos pedem caminhos suaves, 
Os fortes pedem asas firmes. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense