quarta-feira, 5 de novembro de 2025

A Geometria do Pensar

A mente, quando desperta, busca forma. 
Não suporta o informe, 
Mas também não se contenta com o molde. 
Disciplina é o intervalo 
Entre o impulso e o sentido, 
Um espaço de contenção 
Onde o caos se faz linguagem. 
 
Pensar é erguer arquitetura sobre o abismo. 
Cada ideia, 
Uma pedra suspensa pelo fio do rigor. 
A paciência é a argamassa invisível 
Que impede o colapso do pensamento. 
 
A disciplina intelectual não aprisiona, 
Ela tensiona, sustém, 
Traça fronteiras 
Que o espírito precisa para não se perder 
Na vastidão do possível. 
 
Sem método, o intelecto se dispersa 
Como luz em névoa. 
Com excesso de método, torna-se pedra imóvel. 
A sabedoria 
Está no ponto de combustão entre ambos: 
Onde o fogo encontra a geometria. 
 
Domar o caos é o primeiro gesto do criador. 
Não para destruí-lo, 
Mas para ouvir o ritmo secreto de sua desordem, 
Pois só o pensamento disciplinado 
Pode tocar o indizível 
Sem se dissolver nele. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 4 de novembro de 2025

Desconforto do amor

 Só de pensar em você, 
Meu corpo se aquieta 
Mas a alma se remexe, 
Como quem dorme num leito de espinhos 
E sonha com flores. 
 
Você mora onde meu pensamento tropeça, 
Num canto da memória que nunca cicatriza. 
É presença que falta, 
Falta que pesa, 
Peso que flutua 
Nas veias do meu silêncio. 
 
O amor, quando chega sem pedir licença, 
É como uma febre serena: 
Não derruba, 
Mas desorienta. 
É um vazio tão cheio de você 
Que não sei mais o que é paz 
Sem essa inquietude. 
 
Você, 
Meu leve tormento, 
Meu doce incômodo, 
Minha âncora no ar, 
Só de pensar em você, 
Tudo em mim perde o lugar. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Quem ainda se indigna

Ainda que imposta, 
Há que rejeitar-se, sempre, 
A normalização do absurdo. 
 
Porque o hábito é um veneno doce, 
E o silêncio, uma forma de consentir. 
Chamam de ordem o que é submissão, 
De paz o que é medo, 
De progresso o que é ruína disfarçada. 
 
Mas há um grito que não se dobra, 
Um lampejo que resiste na sombra. 
É nele que o humano se afirma, 
Não no aceitar, mas no negar o inaceitável, 
Não no conformar-se, mas no desobedecer 
À mentira repetida até parecer verdade. 
 
O absurdo quer ser rotina, 
Quer sentar-se à mesa 
E brindar à indiferença. 
Mas quem ainda sente, 
Quem ainda sonha, 
Quem ainda se indigna, 
É a rachadura por onde entra a luz. 
 
E por essa fresta, 
A liberdade respira. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 2 de novembro de 2025

Meu verbo é livre

 Não serei mais uma costa curvada 
Sob o sol dos mandamentos e relógios. 
Meu corpo não pertence ao toque dos sinos 
Nem às vozes que pedem licença para existir. 
O que nasce em mim agora 
É um nome sem dono, 
Um silêncio que não precisa dizer “senhor”. 
 
Hoje ergo o dorso, 
Não por orgulho, 
Mas por fim. 
Não carrego mais o peso dos horários, 
Nem a reverência que dobra a língua. 
O sol pode arder, 
Mas não me comanda. 
E de minha boca 
Não sairá mais o eco do “senhor”. 
 
Já fui a sombra curvada dos dias, 
Moldada pelo medo do atraso, 
Pelo gesto automático da obediência. 
Agora me ergo, 
Tronco de luz que não se curva, 
Palavra que não se cala. 
Meu tempo começa onde acaba o “senhor”. 
 
Não sou mais coluna dobrada, 
Nem voz domesticada. 
Meu verbo é livre, 
E o sol, testemunha. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 1 de novembro de 2025

A próxima esquina

 A próxima esquina 
Talvez traga o riso que perdi, 
Ou o silêncio que aprendi a amar. 
Talvez um rosto novo, 
Ou o eco do que não vivi. 
Talvez uma nova forma de ver o mundo 
Ou de desistir dele de uma vez. 
 
A vida dobra esquinas como quem muda de página. 
Cada curva — um talvez, 
Um corpo, uma esperança, 
Ou uma tragédia disfarçada de começo. 
E nunca sabemos ao certo 
O que iremos encontrar do outro lado. 
 
A próxima garota pode ser um porto, 
Ou uma tempestade. 
A próxima esperança, um sopro; 
A próxima tragédia, um espelho. 
Terá ela os olhos castanhos 
E o coração aberto ao amor? 
 
Há sempre algo à espreita depois da esquina: 
Um olhar que acende, 
Um beijo que apaga, 
Um destino que ri da nossa pressa. 
Há sempre um mistério que nos assusta 
E uma esperança que nos acalenta. 
 
Quem caminha sem medo das esquinas 
Entende que viver 
É escolher entre seguir em frente 
Ou naufragar no talvez. 
Entende que esse mistério é necessário 
Para que a vida não seja vazia. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Jardim do devaneio

 Nasce o devaneio 
Quando o silêncio respira fundo, 
É ali que o desejo encontra o espelho da alma 
E a tentação veste o perfume do impossível. 
 
Toda imaginação tem um ponto de febre, 
Um brilho úmido entre o real e o sonho, 
Onde o corpo quer tocar 
O que a mente teme nomear. 
 
O devaneio é um jardim 
Escondido sob as pálpebras. 
As flores são desejos antigos, 
As sombras, 
Tentações que nunca aprenderam a morrer. 
 
Há um instante 
Em que o pensamento se curva 
Ao prazer do próprio delírio. 
É aí que o devaneio nasce, 
Filho da falta e do fogo, 
Irmão do que não se pode dizer. 
 
Tudo o que desejamos demais cria um eco. 
Esse eco se transforma em sonho, 
E o sonho, quando não cabe mais na noite, 
Vira devaneio, 
Um rio subterrâneo de vontades sem nome. 
 
O devaneio não é fuga, é retorno. 
Retorno àquilo que fomos 
Antes da razão nos domar, 
À pureza do querer, 
Ao instante 
Em que o proibido ainda não tinha forma. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

O modo de ver a vida

 Ver a vida de outro modo 
É perceber que o chão também respira, 
Que o tempo não corre, 
Apenas muda de forma 
Como a água que sonha ser nuvem. 
 
Há quem veja o mundo pela janela, 
Outros o enxergam no reflexo do vidro. 
O segredo está em saber que ambos os lados 
Podem conter o infinito. 
 
Viver diferente é caminhar descalço na alma, 
Sentir as pedras que o pensamento ignora 
E descobrir que a dor, às vezes, 
É apenas o corpo tentando florescer. 
 
Os olhos que aprendem a ver o invisível 
Descobrem que nada é pequeno, 
Que até o silêncio tem cor 
E o instante, quando amado, é eterno. 
 
A vida muda 
Quando deixamos de querer entendê-la. 
Ela não é um enigma, 
É um poema inacabado, 
Que só faz sentido enquanto se escreve. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense
Imagem: Joe Bengala

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Não ore por caminho fácil

 Não suplique pela estrada lisa, 
Onde o vento não desafia. 
Peça músculos na alma, 
Para suportar o peso do sonho. 
 
Não temas os espinhos, 
Eles ensinan o passo leve. 
Que tuas pernas saibam dançar 
Mesmo sobre o chão áspero do destino. 
 
O caminho fácil adormece o espírito; 
O difícil desperta o fogo na alma. 
Que teu corpo se curve, mas não quebre, 
E tua fé seja o fôlego das montanhas. 
 
Não implores que o mundo se torne leve, 
Pede apenas joelhos que não tremam. 
Pois o que importa não é o atalho, 
Mas a coragem de seguir adiante. 
 
Quando pedires algo aos céus, 
Não seja alívio, mas vigor. 
Pois o ouro da jornada 
Se forja no atrito da dor. 
 
Não ore por suavidade, 
Ore por fibra. 
Que tuas pernas sejam troncos, 
E teus passos, raízes. 
 
Há beleza no cansaço, 
É ele quem prova que seguimos. 
Os fracos pedem caminhos suaves, 
Os fortes pedem asas firmes. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

No fim, seremos histórias

 Será que no fim 
Todos nós nos tornaremos histórias? 
Talvez seja esse o destino mais humano: 
Dissolver-se no tempo, 
Não como corpo, mas como lembrança. 
Somos capítulos que o vento folheia, 
Vozes que alguém repete 
Para não deixar morrer o que fomos. 
 
O corpo se apaga, 
Mas a memória insiste em permanecer, 
Respira em outras bocas, se abriga em outros olhos. 
Cada gesto, cada palavra dita com ternura ou fúria, 
Vira fragmento de um enredo 
Que o mundo continua escrevendo. 
 
Ser história é permanecer em outra forma, 
É existir sem presença, mas com sentido. 
Os rostos se apagam, 
Mas a emoção que deixamos nos outros não desaparece. 
Ela se torna um eco, um rumor distante, 
Uma página marcada no livro da vida. 
 
Talvez viver 
Seja apenas preparar-se para esse instante: 
Quando deixaremos de ser carne 
E passaremos a ser voz, 
Quando o tempo nos tomará nas mãos 
E nos guardará entre as páginas de alguém. 
 
E assim seguiremos, 
Como narrativas inacabadas, 
Livros que o universo relê em silêncio, 
Enquanto as nossas histórias,
Descalças e serenas, 
Continuam caminhando pela memória dos que ficaram. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O que me fez ser

 Não foi um momento só. 
Não foi uma decisão nítida, 
Nem uma virada de chave. 
Fui me tornando — devagar, por entre frestas, 
Nos cantos onde ninguém olhava. 
Fui me esculpindo em silêncio, 
Porque falar doía mais do que calar. 
 
Quando criança, 
Aprendi a escutar antes de existir. 
Era mais seguro. 
Percebi cedo que o mundo falava alto, 
Mas nem sempre dizia algo com verdade. 
Então, fui silêncio — mas não ausência. 
Fui presença contida, esperando ser notado
Sem gritar por isso. 
 
Fui os abraços que desejei e não vieram, 
As palavras doces que imaginei 
E precisei inventar para mim mesmo. 
Fui criando um alfabeto afetivo 
Só com o que sobrou. 
 
Meus afetos, aprendi a escondê-los 
Como quem esconde um caderno íntimo 
Debaixo da cama. 
Com medo que rissem. 
Com medo que roubassem. 
Com medo que amassem, 
E depois partissem. 
 
Fui me tornando alguém 
Que observa antes de entregar. 
Que oferece a alma aos poucos, 
Com mãos trêmulas, 
Como quem carrega algo frágil demais 
Para ser rejeitado. 
 
Hoje, se me perguntas quem sou, 
Talvez eu diga: 
Sou o que restou 
De todas as versões 
Que precisei abandonar para sobreviver. 
 
Mas há beleza nisso também. 
Porque nas minhas cicatrizes há mapa. 
Nos meus silêncios, memória. 
E no meu olhar, ainda vive 
Uma esperança tímida 
De ser amado sem precisar pedir. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

A dor que tem teu nome

 Só de pensar em você, 
Minha alma range os dentes. 
Há um frio que sobe pelas costas do espírito, 
Como se a lembrança de ti 
Fosse feita de ferrugem e ossos. 
 
Você é a cicatriz que escolheu não fechar, 
Um sussurro que lateja nas entranhas do pensamento. 
Teu nome, 
Quando ecoa dentro, 
Traz o gosto amargo 
De um veneno antigo 
Que aprendi a beber com ternura. 
 
Amar você, 
É amar o corte, 
É cuidar da ferida 
Como quem cultiva um altar de dor. 
 
Meu coração não pulsa: 
Ele vigia. 
Vigia tua ausência 
Como um cão preso à porta 
De um templo em ruínas. 
 
Você é o desconforto eterno 
Que acende as sombras em mim. 
E eu, tolo devoto desse mal, 
Só de pensar em você, 
Já não sei mais 
Se sou humano, 
Ou só um resto de saudade 
Que esqueceu de morrer. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Toda palavra quer nascer livre

 As palavras, quando deixadas sozinhas, 
Criam seu próprio alfabeto. 
Crescem como ervas entre as pedras da mente, 
Sussurrando segredos 
Que nem o autor se lembra de ter sonhado. 
 
Quando não as vigio, as palavras dançam. 
Tropeçam umas nas outras, 
Beijam-se no escuro da página, 
Geram sentidos que não me pertencem. 
 
As palavras fervilham 
Quando o silêncio se distrai. 
Tomam corpo, rosto, 
E caminham pela noite 
À procura de um novo dono. 
 
Não há prisão que as segure. 
Enquanto penso em moldá-las, 
Elas já estão moldando a mim. 
 
Toda palavra quer nascer livre, 
Mesmo as que escrevo em voz baixa. 
Quando viro o rosto, elas se multiplicam, 
Como pensamentos à espreita do infinito. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Quando declamo você

 Sou impuro, sim — e nisso há verdade. 
Quando te nomeio, o verbo apodrece em mim, 
Porque há febre no teu nome, 
Há doença na tua lembrança. 
Declamar você é sujar a própria boca. 
 
Minha voz te busca nas frestas da carne, 
E cada sílaba tua me contamina. 
Não há pureza possível quando te evoco, 
Somos lodo e espelho, febre e oração, 
Um mesmo corpo delirando de amor e doença. 
 
Declamar você é abrir feridas antigas. 
A poesia que te chama vem manchada, 
Não de tinta, mas de pus, 
Não de arte, mas de febre. 
Sou impuro — e ainda assim te adoro. 
 
Há beleza no que apodrece devagar. 
No som que traz germes e lembranças. 
Quando declamo você, 
Não é o poema que fala, 
É a doença tentando sobreviver em mim. 
 
Sou impuro, e talvez por isso te compreenda. 
Há sujeira em cada verso que te nomeia, 
Um tipo de santidade invertida, 
Onde o sagrado é o que sangra. 
 
 Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O tempo de partir

 Os dias passam como rios silenciosos, 
Levando na corrente o que fui, 
O que quis, o que temi. 
E quando o tempo de partir se aproxima, 
Não há tristeza, apenas o murmúrio 
De um curso que sempre soube o caminho do mar. 
 
Há um instante em que o relógio se cala, 
E o coração entende: 
Não se trata de ir embora, 
Mas de voltar para aquilo 
Que sempre chamou em silêncio. 
 
O tempo não nos toma, 
Ele nos devolve. 
Devolve ao vento o que era pó, 
À luz o que era chama, 
Ao silêncio o que era alma. 
 
Saber que os dias passam 
É compreender 
Que a eternidade mora no instante. 
E que partir não é fim, 
É apenas mudar de forma, 
Como a chama que, ao apagar-se, se faz brisa. 
 
O tempo de partir chega com passos suaves, 
Como quem não quer interromper um sonho. 
E a alma, cansada de horizontes, 
Aceita o convite do infinito. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Quis esconder-me

 Desvio os olhos, 
Mas eles sempre sabem o caminho de volta. 
O coração é cúmplice, 
Denuncia o que a boca cala. 
 
Olhar é uma confissão silenciosa. 
Por isso às vezes fecho os olhos, 
Fingindo descanso, 
Quando na verdade é fuga. 
 
Há um espelho em cada olhar. 
E o meu, ao evitar o teu, 
Só reflete a própria covardia. 
 
Quis esconder-me num piscar de olhos, 
Mas o tempo percebeu. 
Nada se esconde onde há luz, 
Nem o desejo, 
Nem o medo de ser visto. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense