sexta-feira, 30 de maio de 2025

Decadência

Caminho entre destroços de mim 
Com o porte de um desfile. 
O tempo mastigou meus dias 
Com dentes de ouro falso, 
Mas ainda piso firme 
Como quem crê na eternidade de um salto alto. 
 
Meus bolsos estão cheios 
De cinzas, Bilhetes antigos, 
E gargalhadas mal lembradas 
Mas faço deles um estojo 
Para a última faísca de beleza. 
 
O espelho me olha com pena, 
Mas eu retribuo com pose. 
A decadência me veste como um alfaiate fiel: 
Encaixe perfeito nas costuras da desilusão. 
 
As paredes do meu quarto 
Descascaram com charme. 
Até os cupins parecem artistas, 
Esculpindo arabescos nas vigas 
Do que restou de mim. 
 
Já não espero visitas, 
Mas deixo as velas acesas. 
Não por esperança, 
Mas por vaidade. 
 
E se perguntarem se sofri, 
Direi que sim 
Mas sofri como se dança um tango: 
Coluna ereta, olhos fechados, 
E um perfume 
Que disfarça qualquer desmoronamento. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

O eco dos esquecidos

A ideia é soprada nos meus ouvidos, 
Não sei se é sonho ou lembrança, 
Mas queima. 
Vem leve como brisa de outono, 
Mas carrega o peso de séculos calados. 
 
Escrevo. 
Com dedos trêmulos, risco o papel 
Como quem decifra sombras. 
Talvez seja só imaginação 
Ou talvez o eco de um grito 
Que a história abafou em seus porões. 
 
Ouço vozes sem rosto, 
Vozes que se agarram à minha pele, 
Que sussurram nomes, 
Datas, 
Lugares que ninguém mais visita. 
 
São os esquecidos. 
Os que morreram com os olhos abertos, 
Os que tiveram a boca selada, 
Os que arderam em fogueiras sem chamas, 
Os que dançaram em silêncio 
Nos corredores da loucura. 
 
Eles me usam como papel. 
Minha carne é página, 
Meu sangue, tinta, 
Meu medo, trilha sonora. 
 
Não sou autor — sou canal. 
Não crio — evoco. 
Não escrevo — exorcizo. 
 
E a cada linha, 
Um segredo se liberta, 
Uma cicatriz se abre, 
Um tempo se dobra. 
 
A ideia não é minha 
Vem do vento, 
Vem das frestas, 
Vem de um tempo que não vivi. 
Escrevo como quem traduz 
O sussurro dos que não puderam falar. 
 
Escrevo, sim. 
Mas não por escolha. 
Escrevo porque se não o fizer, 
As vozes não me deixarão dormir. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Quem ama de novo

A espera tem o gosto do que nunca veio, 
Mas insiste em bater na porta do peito 
Com os dedos ansiosos da esperança. 
É um silêncio povoado de suspiros, 
Onde o coração se senta à beira do tempo 
E reza por alguém que ainda não tem nome. 
 
Mas o medo… 
Ah, o medo costura feridas antigas 
Com linhas invisíveis, 
Fazendo do amor um campo minado 
Onde cada passo treme. 
 
Desejo e temor dormem na mesma cama. 
O primeiro sonha com olhos que brilham, 
O segundo acorda suando 
Ao lembrar do que já sangrou. 
 
Quem ama de novo é um sobrevivente. 
Carrega nos lábios um beijo cauteloso 
E no peito um escudo invisível 
Feito de promessas quebradas. 
 
Esperar é escrever cartas para o vento. 
Amar outra vez… 
É deixar que o vento responda 
Com a voz de alguém 
Que talvez também tema, 
Mas venha. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Nem todo labirinto

 Nem todo labirinto foi feito para escapar. 
Alguns existem apenas para que a gente se perca 
E se descubra perdido. 
 
Há caminhos que se dobram sobre si mesmos, 
Como serpentes que devoram o próprio rastro. 
Ali, a saída é uma ilusão 
Que respira com o tempo. 
 
O pior labirinto é aquele que mora em nós. 
Sem muros, sem portas. 
Apenas espelhos. 
 
Nem todo labirinto quer nos prender. 
Alguns apenas nos convidam 
A permanecer no centro 
Onde o silêncio é rei e a solidão, altar. 
 
Alguns labirintos 
Foram escritos em linhas tortas, 
Sem começo, meio ou fim. 
São poemas trancados em si mesmos, 
Sem leitor, sem resposta. 
 
Quem disse 
Que todo caminho precisa levar a algum lugar? 
Há trilhas que existem só para nos lembrar 
Que o destino não é o ponto final, 
Mas o próprio perder-se. 
 
E se a saída for o próprio desistir? 
Aceitar que certas dores não se vencem 
Se acolhem. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 27 de maio de 2025

Invisível

 Nem tudo que é raiz grita alto no vento. 
Há silêncios que sustentam florestas inteiras. 
 
A estrela cadente brilha e some, 
Mas é o sol oculto da manhã 
Que faz a vida florescer. 
 
O diamante repousa no fundo da terra, 
Enquanto o vidro estilhaçado brilha à luz do poste. 
 
Os gestos mais profundos não fazem barulho 
Um olhar, um perdão, 
Um fio de esperança costurado em segredo. 
 
O pavão abre a cauda e rouba os olhos. 
A formiga passa despercebida, 
Mas carrega o mundo nas costas. 
 
O que grita nem sempre tem razão. 
O que cala, às vezes, carrega um universo. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Prefiro fugir da zona de conforto

Há uma estranheza em mim 
Que não se dobra ao tempo, 
Nem às doutrinas de vidro 
E plástico que chamam de futuro. 
Eu não sou algoritmo, 
Sou sombra que dança ao redor do fogo 
Que esqueceram. 
 
Não me peçam para caber em suas fórmulas. 
Meu sangue não calcula, queima. 
Minha pele não compartilha, sente. 
Minha alma não tem preço, tem sonhos. 
 
Fugi da zona de conforto 
Como quem abandona um quarto trancado, 
Onde o ar cheira a promessas vencidas. 
Prefiro o frio das madrugadas incertas 
Ao calor do mesmo sofá 
Onde o espírito apodrece. 
 
A modernidade construiu castelos de vidro 
Onde se vive olhando para telas, 
Mas eu prefiro as cavernas ancestrais 
Onde os ecos ainda guardam vozes selvagens. 
 
Não sou revolucionário, 
Sou um exilado de mim mesmo. 
Recuso o cardápio das ideias fáceis, 
Prefiro jejuar com os loucos nas montanhas. 
 
O conforto é uma prisão de seda. 
Bonita, macia, mas prisão. 
A liberdade? 
Morde. Fere. Transforma. 
E eu prefiro a liberdade de pensar. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 26 de maio de 2025

Tão profundo como os mistérios do mar

Há um nome que não ouso dizer, 
Um fogo que arde sob o silêncio, 
Como brasas ocultas sob as ondas 
De um mar que nunca dorme. 
 
É amor — mas não desses que se contam. 
É amor do tipo que se esconde 
Nas cavernas salgadas do peito, 
Onde a luz não toca, 
Mas tudo pulsa. 
 
Carrego-o como um náufrago 
Abraça a última madeira: 
Não por esperança, 
Mas por instinto. 
 
Ele é profundo. 
Mais profundo que os olhos podem ver, 
Mais denso que as correntes que arrastam navios 
E segredos. 
 
Não posso revelá-lo. 
Não por covardia, 
Mas porque as palavras seriam rasas demais 
Para um sentimento que tem o peso do oceano. 
 
E ainda assim, ele me habita, 
Como o sal habita o mar, 
Silencioso, necessário, 
Irremediável. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 25 de maio de 2025

Uma geração que não pensa

 Mesmo o homem que afunda no silêncio 
Carrega o eco do mundo nos ossos. 
Pois o barro de que foi feito não é só seu, 
Mas também da lama 
Pisada por tantos outros pés. 
 
A indiferença dos outros 
É uma doença 
Que se alastra pela alma do tempo. 
E se ele — o triste — não vigia, 
Torna-se espelho daquilo que odeia. 
 
Uma geração que não pensa 
Cava buracos onde o futuro tropeça. 
E o homem triste, mesmo cansado, 
Sabe que o chão também é seu. 
 
Ele se importa porque, 
No fundo, ainda sangra verdade. 
A tristeza é o preço 
De quem não se cegou por completo. 
 
A mácula do mundo não é uma mancha na pele, 
Mas um incêndio nas entranhas. 
E até quem desistiu de correr 
Sente o calor do fogo. 
 
Porque a beleza ainda sussurra, 
Mesmo quando o grito é surdo. 
E o homem triste, ferido de lucidez,
Não pode ignorar 
O que fere tudo que é sagrado. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense 
 

sábado, 24 de maio de 2025

O esconderijo da infância

 Toda a existência, pesada como chumbo, 
Perde o fôlego e o nome 
Quando tropeçamos no esconderijo da infância 
Onde o tempo ainda brinca descalço 
E os medos dormem de barriga cheia. 
 
O mundo inteiro pesa até doer os ombros, 
Mas se desfaz em poeira dourada 
Quando abrimos a porta esquecida 
Do quintal onde enterramos nossos segredos. 
 
A angústia da vida adulta se cala 
No instante em que o vento nos leva 
De volta àquela árvore torta, 
Onde juramos ser eternos. 
 
Quando reencontramos 
O esconderijo da infância, 
Tudo o que parecia urgente 
Se dobra, em silêncio, 
Como roupas guardadas por uma avó ausente. 
 
A existência sufoca como neblina espessa, 
Mas se dissipa 
No instante em que ouvimos, de novo, 
A risada que fomos um dia. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 23 de maio de 2025

A leitura é esconderijo

Amo a leitura porque nela encontro portais 
Cada página, uma fresta por onde escapo de mim. 
Lá, não sou feito só de carne e tempo, 
Sou vento, sou abismo, sou o outro. 
 
Leio para adormecer a urgência do mundo, 
Para ouvir o sussurro das palavras antigas 
Que me chamam pelo nome que esqueci. 
Na leitura, lembro quem sou 
E descubro quem ainda posso ser. 
 
Nos livros, o silêncio tem voz, 
E as sombras aprendem a dançar. 
Cada frase acende uma lanterna no escuro, 
E eu sigo, descalço, pelo caminho das letras. 
 
A leitura é meu esconderijo e meu reencontro. 
É onde as dores ganham forma 
E, às vezes, voam para longe. 
É onde abraço ideias 
Como se fossem velhos amigos voltando para casa. 
 
Amo ler porque, entre as palavras, 
Encontro pedaços do mundo 
Que ainda não existiram, 
Mas que já fazem morada em mim. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Sussurrarei meu amor

 Sussurrarei meu amor 
Quando o silêncio pesar mais que as palavras, 
E tua respiração for o único som 
Que mereça companhia. 
 
Direi meu amor ao teu ouvido 
Como quem rega uma flor noturna: 
Sem pressa, sem alarde, 
Apenas o som da alma 
Descendo em pétalas. 
 
Não será no grito da festa 
Nem no brilho do dia, 
Mas na penumbra entre dois olhares, 
Quando tua pele pedir abrigo 
E meu coração for o único idioma. 
 
Sussurrarei meu amor 
Quando o mundo esquecer de existir 
E só restar em mim a coragem 
De tocar tua eternidade com uma palavra. 
 
Há coisas que só os ouvidos compreendem: 
Meu amor será soprado assim, 
Como vento que beija o rio, 
Sem querer ser notado, 
Mas deixando ondas para sempre. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 21 de maio de 2025

O sonho sem despertar

 Há um lugar onde os passos não ecoam, 
Onde a brisa fala em línguas esquecidas, 
E o tempo não sabe morrer. 
 
Sonho-me ali, 
No mesmo limiar de uma porta que não se abre, 
Perseguindo rostos sem nome 
E vozes que sussurram promessas 
Que evaporam ao toque da memória. 
 
É um véu que nunca se rasga, 
Uma névoa onde tudo é quase. 
Quase verdade, quase fuga, 
Quase eu. 
 
Ali, durmo de olhos abertos, 
E a realidade se curva como um espelho gasto. 
Não sei mais se respiro ou apenas imagino o ar, 
Se vivo ou apenas me repito 
Em um ritual sem fim. 
 
Porque há sonhos que não pedem licença, 
Nem têm hora de partir. 
Eles fincam raízes em nossa carne adormecida 
E florescem — eternos, 
No jardim do nunca acordar. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Labirinto de memórias

 O tempo não é linha, 
É espiral sussurrante. 
Dobra-se em corredores de ecos, 
Onde cada lembrança é uma porta 
Que se abre para outra que já foi. 
 
No labirinto da memória, 
As paredes são feitas de ausências, 
E o chão, de passos esquecidos. 
Ali, o agora tropeça no ontem 
E o futuro, 
Se esconde em sombras que já passaram. 
 
Cada curva é uma cena, 
Cada encruzilhada, 
Um dilema que nunca se resolveu. 
E mesmo sem saída, 
Caminhamos, 
Porque o coração reconhece os atalhos 
Que a razão esqueceu. 
 
Há relógios quebrados 
Pendurados nas paredes do inconsciente, 
Marcando a hora exata 
Em que uma saudade nasceu. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 20 de maio de 2025

Sem uma só palavra

 Há silêncios que gritam 
Com a força de mil tempestades. 
Quando a alma transborda, 
Palavras se tornam supérfluas. 
Os olhos, às vezes, 
São mais sinceros que a língua. 
Eles não sabem mentir 
Quando o coração já falou. 
 
Não precisei dizer nada. 
Você entendeu 
Porque o que sentimos 
Se entrelaçou no ar entre nós. 
A emoção é linguagem antiga, 
Anterior ao verbo, 
Ao som, ao nome das coisas. 
Ela fala com a pele, 
Com o tremor das mãos. 
 
Quando o peito aperta, 
E o mundo se cala ao redor, 
É a emoção dizendo: 
“Escute-me sem ruídos.” 
Há beijos que dizem "fica", 
Lágrimas que sussurram "sinto", 
Abraços que gritam "aqui estou". 
Tudo isso 
Sem uma só palavra. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 19 de maio de 2025

O universo em mim

Nem todo o universo cabe nas estrelas. 
Há galáxias escondidas no fundo dos olhos, 
Buracos negros no silêncio das memórias, 
Supernovas no estalo de um pensamento. 
 
O infinito também mora em mim 
Nas dobras do coração cansado, 
Nos mapas secretos do que sinto 
E nunca disse. 
 
Olham para o céu buscando respostas, 
Mas às vezes, o cosmos sussurra 
Do lado de dentro 
Em cada batida, 
Em cada sonho não explicado. 
 
Nem todo universo é constelação. 
Há mundos que nascem no escuro da alma, 
Planetas que giram ao redor de lembranças, 
E luas feitas de silêncio e desejo. 
 
Dentro do peito há um espaço sideral. 
Não brilha, não gira, 
Mas pulsa. 
E às vezes, explode 
Como tudo que é vivo e vasto. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 18 de maio de 2025

Caminhe com alegria

Caminhe com alegria, 
Mesmo que a estrada seja de terra. 
Cada passo 
É uma flor que você pode plantar com leveza. 
Seja você o jardim que deseja atravessar. 
 
Semeia o bem com mãos tranquilas, 
E onde houver pedra, nascerá ternura. 
Pois quem vive em paz com a própria alma, 
Anda leve até em meio à tempestade. 
 
O mundo muda devagar, 
Mas quem planta otimismo 
Colhe manhãs mais claras. 
Caminhe sorrindo: 
É sua alma iluminando a trilha. 
 
Deixe pegadas feitas de esperança, 
Abraços feitos de silêncio sincero. 
E que sua consciência seja travesseiro leve 
No fim de cada jornada. 
 
Não espere que o céu esteja limpo, 
Dance mesmo com nuvens. 
A vida retribui quem caminha em paz 
Mesmo sem promessas de sol. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sábado, 17 de maio de 2025

Odisseia corriqueira

Entre almofadas e bolsos esquecidos, 
Navega o herói de chinelos rotos, 
Em busca da relíquia miúda, 
A chave, 
Que abre mais que a porta: 
Abre o dia. 
 
A fila serpenteia como dragão de silêncio, 
Bolsos vazios, sacolas sonhando peso. 
Frutas amadurecem 
Como decisões na alma, 
Escolher o tomate mais firme 
É também resistir à pressa. 
 
A colher mergulha no escuro do pó, 
Como um barqueiro tateando o futuro. 
O bule canta. 
E no vapor que dança sobre a xícara, 
Levanto âncoras para mais um dia. 
 
Corpos comprimidos em conchas de metal, 
O ônibus ruge, e partimos 
Não para Ítaca, 
Mas para o escritório da rua de baixo. 
Ali, entre fones de ouvido e olhares cansados, 
Há o épico de sobreviver calado. 
 
Os passos que me trouxeram 
São os mesmos que me levam de volta. 
Na porta, o trinco range um cântico antigo: 
"O herói voltou, 
Com sacolas e dores nas costas." 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

sexta-feira, 16 de maio de 2025

O mar e seu olhar

Desejo o mar 
Com a sede de quem nunca soube nadar. 
Vejo-o ao longe, vasto e azul, 
Mas meus pés 
Estão presos à terra firme dos impossíveis. 
Assim também é teu olhar: 
Horizonte que me chama, 
Mas não me permite chegar. 
 
Queria o mar, mas o mar não me queria. 
Queria teu amor, 
Mas tua alma já era porto de outra vela. 
Sou barco sem leme, 
Soprado por ventos de ausência, 
Navegando no sal da minha própria espera. 
 
Teu olhar é onda que beija a areia, 
E logo recua. 
Minha vontade, náufraga, 
Morre na linha que separa 
O que se sonha e o que se toca. 
 
Não posso navegar o mar, 
Não posso habitar teu abraço. 
Mas posso ser a poesia do que falta, 
O eco de um amor que nunca foi, 
Mas ainda assim, dói como se fosse. 
 
Te quis como quem deseja o mar: 
Não para cruzá-lo, 
Mas para ser afogado em sua beleza. 
E mesmo longe, mesmo negado, 
Há eternidades que vivem num único olhar. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Sem memórias

Sem memórias, somos folhas ao vento, 
Sem raiz, sem rumo, sem estação. 
O futuro é uma árvore que cresce 
No húmus dos dias que já se foram. 
 
A lembrança é a chama que aquece o amanhã. 
Sem ela, o tempo se torna frio, 
Um deserto de possibilidades 
Sem pegadas a seguir. 
 
O futuro não nasce do nada 
Ele é filho da saudade, 
Do que ficou gravado 
Nas paredes do coração. 
 
Cada memória é um fio dourado 
Tecendo o manto do porvir. 
Sem esses fios, 
Só restaria o vazio. 
 
Se esquecemos quem fomos, 
Como saberemos quem ser? 
O amanhã é um espelho 
Onde o passado se reconhece. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

quarta-feira, 14 de maio de 2025

O silêncio de quem não ama

Te espero nas dobras do tempo, 
Onde o vento sussurra teu nome 
Sem nunca ter sido chamado. 
Sou o eco que insiste, 
No vazio que não te comove. 
 
Minha voz é um rio manso 
Que busca tua margem, 
Mas tu és pedra seca, 
Distante, imóvel, 
Surda ao desejo que passa. 
 
Teu riso, que nunca foi meu, 
Brilha no escuro como promessa 
De um sol que jamais amanhece 
No céu do meu peito. 
 
Te amei como se ama o impossível, 
Com a fé dos que rezam ao abismo 
E recebem de volta 
Apenas o próprio grito. 
 
E mesmo assim, 
Te guardo no espaço entre os versos, 
Onde a ausência queima mais 
Do que qualquer presença. 
 
Pois amar quem não ama 
É viver sem morrer, 
É sangrar sem ferida, 
É ser jardim no deserto, 
Belo, inútil e sozinho. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

terça-feira, 13 de maio de 2025

O perigo em nós

O abismo que mais nos engole 
Não está sob os pés, 
Mas nos olhos, quando já não reconhecem 
O que ali habita. 
 
Há monstros que não rugem, 
Apenas sussurram. 
E nos convencem, dia após dia, 
De que são parte de nós. 
 
A floresta queima por fora, 
Mas o fósforo aceso 
Foi um pensamento 
Que ninguém viu nascer. 
 
Não tema a noite, 
Nem o trovão, 
Nem a fera no mato. 
Tema o silêncio das suas próprias intenções 
Quando ninguém está olhando. 
 
O verdadeiro perigo 
Não vem com presas, 
Mas com promessas. 
E veste o rosto 
Que vemos no espelho. 
 
Dentro de mim mora uma sombra 
Que aprendeu a sorrir. 
E quanto mais a ignoro, 
Mais ela cresce em silêncio. 
 
Às vezes, somos a tempestade 
Que juramos enfrentar. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

segunda-feira, 12 de maio de 2025

A grandeza é solitária

A grandeza caminha só, 
Em trilhas que ninguém ousa seguir. 
É um farol em meio ao nevoeiro 
Ilumina, 
Mas ninguém quer se queimar com sua luz. 
 
Ser grande é ouvir o silêncio 
Onde os outros esperam aplausos. 
É erguer montanhas no espírito 
Enquanto o mundo só vê a poeira nos pés. 
 
Há um frio na altura da grandeza 
Que não aquece com mãos humanas. 
Lá em cima, os ventos são outros 
E a companhia, 
Muitas vezes, apenas o próprio eco. 
 
A alma vasta abriga tempestades 
Que os olhos comuns não compreendem. 
É fácil chamar de orgulho o que é apenas 
Um coração pesado de visões. 
 
A grandeza é um exílio voluntário. 
Não por desprezo, mas por destino. 
Como o cometa que risca os céus: 
Belo, único — e sempre de passagem. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

Não se programa o espírito humano

O espírito humano é como o vento entre as árvores: 
Não se deixa capturar por circuitos, 
Nem se traduz em algoritmos. 
Ele canta, ele se parte, ele sonha. 
E sonhar é coisa que máquina nenhuma sustenta. 
 
Pode-se codificar padrões, 
Mas não o lampejo do olhar diante do inesperado. 
Pode-se mapear emoções, 
Mas nunca o abismo que existe 
Entre o medo e a coragem. 
O espírito humano não se escreve, 
Ele se sente, ele se vive. 
 
Nenhum programa compõe o suspiro de uma perda, 
Nem compreende o silêncio 
Entre duas mãos que se tocam. 
O espírito humano dança 
Em um palco onde a lógica é apenas coadjuvante. 
 
É possível prever movimentos, 
Mas não o gesto súbito de ternura. 
É possível simular presença, 
Mas não a ausência que dilacera. 
O espírito humano é um mistério que desafia 
Até mesmo os deuses do silício. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

domingo, 11 de maio de 2025

Na noite absoluta

A noite desceu sem nome, 
Espessa como o silêncio entre dois desconhecidos. 
Nela, o tempo se dissolveu em absinto 
Verde, amargo, incendiando as veias 
Com lembranças que nunca aconteceram. 
 
Cada gole era um rito, 
Um afundar lento na vertigem do Eu. 
Ao redor, corpos dançavam sem gravidade, 
Palavras evaporando 
No hálito dos que ousaram olhar para dentro. 
 
Não era festa — era oferenda. 
Ali, entre sombras e fumaça, 
Alguns rasgaram as peles herdadas, 
Escapando das formas ditas humanas. 
 
Tornaram-se deuses de si mesmos, 
Não por poder, mas por abandono: 
Despiram as promessas, os medos, os espelhos, 
E ergueram no lugar um altar de carne e dúvida. 
 
Na noite absoluta, 
Não há juízes, nem salvação 
Apenas a possibilidade brutal 
De existir sem desculpas. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense