segunda-feira, 21 de abril de 2025

O Homem que Ninguém Libertou — Parte III - (O Que Veio Depois)

Nos dias seguintes, ele deixou de falar. 
Não por trauma 
Mas porque as palavras já não o reconheciam. 
Tentava dizer “trabalho”, 
Mas a língua endurecia. 
Tentava dizer “dever”, 
E o som morria antes de nascer. 
 
As roupas começaram a incomodar. 
Não como tecido 
Como memória. 
Ele as tirou, uma por uma, 
Como quem arranca camadas de uma pele que não é sua. 
Vestiu o vento, o barro, a chuva. 
Começou a andar descalço, 
E o chão o reconheceu como um velho amigo. 
 
As pessoas olhavam, 
Mas não viam mais um homem. 
Viam um vulto estranho, 
Meio bicho, meio silêncio, 
Meio nada. 
 
Numa noite sem lua, 
Ele entrou na floresta. 
Não uma floresta literal, 
Mas uma feita de sombras internas. 
Galhos de lembranças retorcidas, 
Raízes de culpa e medo entrelaçadas. 
 
Ali, no centro escuro, 
Parou diante de uma árvore que não existia. 
Ou talvez sempre tivesse existido, 
Mas só pra quem já se despedaçou por inteiro. 
 
Tocou o tronco. 
O tronco respirou. 
 
E então ele deixou de ser homem. 
Não virou fera, nem santo, nem espírito. 
Virou o que vem depois do nome. 
O que existe quando o eu se desfaz. 
 
Agora habita as brechas 
Nos sonhos de quem duvida, 
Nos silêncios entre as palavras, 
Nas rachaduras dos que ainda acreditam no espelho. 
 
Alguns dizem que ele enlouqueceu. 
Outros dizem que finalmente despertou. 
Mas a verdade é que ele se libertou tanto, 
Que nem a liberdade o contém mais. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

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