quarta-feira, 29 de outubro de 2025

O que me fez ser

 Não foi um momento só. 
Não foi uma decisão nítida, 
Nem uma virada de chave. 
Fui me tornando — devagar, por entre frestas, 
Nos cantos onde ninguém olhava. 
Fui me esculpindo em silêncio, 
Porque falar doía mais do que calar. 
 
Quando criança, 
Aprendi a escutar antes de existir. 
Era mais seguro. 
Percebi cedo que o mundo falava alto, 
Mas nem sempre dizia algo com verdade. 
Então, fui silêncio — mas não ausência. 
Fui presença contida, esperando ser notado
Sem gritar por isso. 
 
Fui os abraços que desejei e não vieram, 
As palavras doces que imaginei 
E precisei inventar para mim mesmo. 
Fui criando um alfabeto afetivo 
Só com o que sobrou. 
 
Meus afetos, aprendi a escondê-los 
Como quem esconde um caderno íntimo 
Debaixo da cama. 
Com medo que rissem. 
Com medo que roubassem. 
Com medo que amassem, 
E depois partissem. 
 
Fui me tornando alguém 
Que observa antes de entregar. 
Que oferece a alma aos poucos, 
Com mãos trêmulas, 
Como quem carrega algo frágil demais 
Para ser rejeitado. 
 
Hoje, se me perguntas quem sou, 
Talvez eu diga: 
Sou o que restou 
De todas as versões 
Que precisei abandonar para sobreviver. 
 
Mas há beleza nisso também. 
Porque nas minhas cicatrizes há mapa. 
Nos meus silêncios, memória. 
E no meu olhar, ainda vive 
Uma esperança tímida 
De ser amado sem precisar pedir. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

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