Desfilam em vitrines digitais,
Vestindo significados de aluguel.
Falam sem respirar.
E eu, entre elas,
Tento ouvir o som que havia antes do verbo.
Talvez o silêncio seja o idioma original,
E toda fala, um exílio.
Por isso escrevo com culpa,
Como quem acende uma vela no meio do dilúvio.
A memória é uma cidade que arde devagar.
Cada lembrança é uma casa abandonada,
Onde o tempo entra sem pedir licença.
Eu visito essas ruínas com ternura e medo,
Colecionando cinzas como quem guarda flores.
O passado é um cemitério
Onde os nomes ainda respiram,
Mas já esqueceram quem são.
Os deuses morreram de cansaço,
Não de descrença.
Foram devorados pelas preces automáticas,
Pelos algoritmos que calcularam o mistério.
Hoje, o altar é uma tela,
E o milagre, um erro de sistema.
Mas ainda há faísca no escuro:
Às vezes, o divino sussurra nas falhas da conexão.
O humano é uma forma inacabada.
Somos o rascunho que o criador esqueceu de apagar.
Talvez devêssemos orgulhar-nos disso:
Há beleza na imperfeição que respira.
Quero crer que a salvação está no fracasso,
Na ternura de quem continua tentando,
Mesmo sem promessa de céu.
Reinventar o humano é aceitar o erro como pai,
E a sombra como mãe.
Quando tudo ruir,
Os sonhos, as máquinas, os mitos,
Voltaremos a ser barro e sopro.
E nesse instante primordial,
Quem sabe, o Éden renasça de cabeça para baixo:
Um paraíso feito de imperfeitos,
Onde o pecado
É apenas um outro nome para a liberdade.
Poema: Odair José, Poeta Cacerense
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