sábado, 4 de outubro de 2025

A reinvenção do humano

 As palavras já não nascem — são fabricadas. 
Desfilam em vitrines digitais, 
Vestindo significados de aluguel. 
Falam sem respirar. 
E eu, entre elas, 
Tento ouvir o som que havia antes do verbo. 
Talvez o silêncio seja o idioma original, 
E toda fala, um exílio. 
Por isso escrevo com culpa, 
Como quem acende uma vela no meio do dilúvio. 
 
A memória é uma cidade que arde devagar. 
Cada lembrança é uma casa abandonada, 
Onde o tempo entra sem pedir licença. 
Eu visito essas ruínas com ternura e medo, 
Colecionando cinzas como quem guarda flores. 
O passado é um cemitério 
Onde os nomes ainda respiram, 
Mas já esqueceram quem são. 
 
Os deuses morreram de cansaço, 
Não de descrença. 
Foram devorados pelas preces automáticas, 
Pelos algoritmos que calcularam o mistério. 
Hoje, o altar é uma tela, 
E o milagre, um erro de sistema. 
Mas ainda há faísca no escuro: 
Às vezes, o divino sussurra nas falhas da conexão. 
 
O humano é uma forma inacabada. 
Somos o rascunho que o criador esqueceu de apagar. 
Talvez devêssemos orgulhar-nos disso: 
Há beleza na imperfeição que respira. 
Quero crer que a salvação está no fracasso, 
Na ternura de quem continua tentando, 
Mesmo sem promessa de céu. 
Reinventar o humano é aceitar o erro como pai, 
E a sombra como mãe. 
 
Quando tudo ruir, 
Os sonhos, as máquinas, os mitos, 
Voltaremos a ser barro e sopro. 
E nesse instante primordial, 
Quem sabe, o Éden renasça de cabeça para baixo: 
Um paraíso feito de imperfeitos, 
Onde o pecado 
É apenas um outro nome para a liberdade. 
 
Poema: Odair José, Poeta Cacerense

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